Ser favorável à Iemanjá não é o mesmo que ser contra Cristo

Nas últimas décadas o Brasil vivencia o crescimento do discurso maniqueísta do bem contra o mal, Cristo x diabo, gospel contra o demônio. Determinados segmentos religiosos fizeram do discurso de guerra e do ódio religioso o seu modus operandi: difunde-se o medo como forma de multiplicar dízimos, votos, bancadas parlamentares, ministros no STF e fortunas pessoais. A coisa vai bem. Segundo o Censo 2022, o Brasil possui cerca de 580 mil estabelecimentos religiosos contra 265 mil de ensino e 248 mil de saúde; isto é, o número de entidades religiosas representa mais do que o dobro do número de instituições educacionais. Contra essa ganância por “almas”, digamos assim, há alguns anos o Supremo Tribunal Federal (STF) determinou que nenhuma pessoa pode ser coagida, constrangida ou obrigada a adotar ou não adotar religião ou crença. Mais recentemente, nossa Suprema Corte deliberou que não se pode apagar e retirar símbolos religiosos de prédios públicos. Segundo o Supremo, o crucifixo não representaria um símbolo religioso mas uma tradição cultural. Ocorre que do ponto de vista jurídico, da Constituição Federal, a tradição cultural do crucifixo não é menos nem mais relevante do que a tradição afrorreligiosa de “jogar flores para Iemanjá”. Tal como não se pode apagar símbolo religioso de prédio público não se pode apagar a tradição cultural de reverência à Iemanjá, sobretudo se consideramos que em Salvador/BA a Festa de Iemanjá (02 de fevereiro) é considerada patrimônio cultural. Aqui fica evidente a ilegalidade da mutilação e do apagamento de Iemanjá do repertório de Cláudia Leitte, fato que levou o Ministério Público da Bahia a instaurar inquérito civil, a nosso pedido. Diz a letra da música: “Maré tá cheia, espera esvaziarJoga flores no marSaudando a rainha Iemanjá” O significado cultural da estrofe é evidente: absolutamente nada a ver com cristianismo; tudo a ver, rigorosamente, com Orixá e com a Festa de Iemanjá, uma das mais populares da Bahia. Ser a favor de Iemanjá não significa ser contra Cristo ou quem quer que seja. Quem conhece a história das religiões afro-brasileiras, aliás, sabe que elas nunca foram contra qualquer religião. O contrário, entretanto, não é verdadeiro. Para desgosto dos racistas, a Constituição da República continua em vigor e o Judiciário ainda não foi dominado por juízes terrivelmente evangélicos.

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STF, Crucifixo e Iemanjá

Semanas atrás o Supremo Tribunal Federal – STF determinou, por votação unânime, que não se pode apagar, retirar símbolos religiosos de prédios públicos. Segundo a Corte Suprema, o crucifixo não representaria um símbolo religioso mas uma tradição cultural, um símbolo cultural. A despeito da solidez jurídica da maioria das decisões do STF, a tese de que crucifixo não remete à religião, mas à cultura, ignora o dado elementar de que religião é manifestação cultural, religião é cultura. Decretar que crucifixo teria deixado de ser símbolo religioso, portanto, além de inútil, em nada diminui seu vínculo com o cristianismo, religião que deveria ser tratada sem quaisquer privilégios ou regalias conforme manda a Constituição Federal. A despeito do desacerto da Corte Suprema, interessa-nos extrair deste julgado o conceito de “tradição cultural” como um bem jurídico que não pode ser descaracterizado, desfigurado, mutilado, apagado.Em julgamento recente sobre o suposto direito ao esquecimento, por exemplo, o mesmo STF deliberou: “É incompatível com a Constituição a ideia de um direito ao esquecimento, assim entendido como o poder de obstar, em razão da passagem do tempo, a divulgação de fatos ou dados verídicos e licitamente obtidos e publicados em meios de comunicação social, analógicos ou digitais”.​ Neste ponto evidencia-se a ilegalidade da mutilação, do apagamento de Iemanjá do repertório de Cláudia Leitte, fato que levou o Ministério Público da Bahia a instaurar inquérito civil, a nosso pedido. Diz a letra da música: “Maré tá cheia, espera esvaziar. Joga flores no mar. Saudando a rainha Iemanjá” ​ O significado cultural da estrofe é evidente: absolutamente nada a ver com cristianismo; tudo a ver, rigorosamente, com Orixá e com a Festa de Iemanjá, uma das mais populares da Bahia. Sem esquecermos do famoso ritual do revéillon, igualmente derivado da cultura afro-brasileira. Ocorre que a Constituição Federal protege o legado civilizatório africano em várias dimensões do direito à memória, o direito à história: 1. fixação de datas comemorativas de alta significação para os diferentes segmentos étnicos nacionais;2. tombamento de todos os documentos e sítios detentores de reminiscências dos antigos quilombos;3. obrigatoriedade da inclusão, no ensino da história, das contribuições das diferentes culturas e etnias para a formação do povo brasileiro. Não se pode falar portanto em licença poética, em direito de autor, em liberdade de expressão numa canção reproduzida à exaustão durante décadas e cuja mudança atende a um único propósito: ultrajar e vilipendiar a memória africana, bem cultural de origem africana e expresso na religiosidade afro-brasileira. A mesma matriz africana, lembremos, da qual nasceu o gênero musical “axé, ou “axé music” com base no qual a cantora acumula fortunas sem qualquer preocupação em congregar-se ao gênero gospel. É sobre tudo isso e muito mais que irão se debruçar as investigações do Ministério Público da Bahia.

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Sim, religião cristã tem o direito de proibir cabelo afro entre adeptos

Sim, religião cristã tem o direito de proibir cabelo afro entre adeptos

Essa semana as redes sociais anunciaram que adeptos de uma denominação neopentecostal representaram criminalmente contra preceito religioso que proíbe penteado afro. A representação é um equívoco jurídico completo. O assunto comportaria múltiplos recortes mas vou me ater a dois ou três para não entediar as(os) leitoras(es). O primeiro é que crença ou descrença, filiação ou desfiliação religiosa integra a autonomia individual, o que significa dizer que compete soberanamente ao indivíduo, sem qualquer forma de coação ou coerção estatal, decidir se adere ou não, se permanece ou abandona uma religião. A qualquer dia, hora e independentemente de motivação, o indivíduo tem o direito de mudar de religião. Para o estado, aliás, é indiferente se a pessoa é crente ou descrente, fiel ou adepto. Crença e descrença são igualmente protegidas pela Constituição e todas as pessoas são consideradas por sua condição de cidadãs, eleitoras, ponto. De outro lado, o princípio da liberdade de organização religiosa significa que o Estado não está autorizado a intervir ou intrometer-se nas normas de funcionamento de uma religião. Anos atrás, em Goiás, um pastor foi obrigado a realizar o casamento religioso independentemente do fato de que a noiva encontrava-se grávida. Mesmo o pastor alegando que a gravidez desrespeitava norma religiosa, o Judiciário mandou arrombar as portas do templo e constrangeu o sacerdote. A pergunta é: adeptos veganos teriam direito a liminares contra abate religioso de animais no islamismo, no judaísmo ou na afrorreligiosidade? Adeptas poderão processar o islamismo pela obrigatoriedade do uso da burca? Reivindicar que o Estado tenha o direito de definir norma religiosa certamente não irá prejudicar as religiões que contam com bancadas parlamentares, prefeitos, governadores, conselhos tutelares, símbolos religiosos e ministros “terrivelmente evangélicos” no STF.  O mesmo não se pode dizer daquelas que não contam com simpatia por parte do poder: estas passarão a ser ainda mais asfixiadas pelas garras do Estado. De seu lado, recentemente o Supremo Tribunal Federal rejeitou uma ação que pretendia obrigar os yanomami a receber missionários que pretendem ingressar nessas comunidades com a finalidade de forçar, coagir a conversão religiosa, desrespeitando memória, história, identidade e dignidade tudo em nome da “civilizadora” e “salvadora” assimilação cultural. Utilizam-se da liberdade de crença (deles próprios, certamente) para satanizar e arruinar crença indígena protegida constitucionalmente. Disse o Supremo Tribunal Federal que a Constituição assegura o direito ao multiculturalismo, o respeito à diversidade de expressões culturais e o pluralismo ideológico. Para muitas denominações pentecostais, entretanto, multiculturalismo decerto deve ser visto como sinônimo de satanismo, primitivismo, maldição de Cam, selvageria, insalubridade.   O episódio da tal representação criminal me fez lembrar uma marchinha carnavalesca magistralmente explorada pelo grande intelectual e mestre Edson Cardoso para descrever a engenhosidade do racismo no Brasil. Diz a “marchinha”: “O seu cabelo não nega mulata, porque és mulata na cor. Mas como a cor não pega, mulata, mulata eu quero seu amor”. É sobre isso irmandade!!! Se eles querem somente uma parte de você mas rejeitam sua identidade, o nome disso é compaixão, caridade, comiseração, algo impossível de ser disciplinado pelo Direito. Simples assim!!! Hédio Silva Jr., Advogado, Mestre e Doutor em Direito pela PUC-SP, fundador do JusRacial Essa semana as redes sociais anunciaram que adeptos de uma denominação neopentecostal representaram criminalmente contra preceito religioso que proíbe penteado afro. A representação é um equívoco jurídico completo. O assunto comportaria múltiplos recortes mas vou me ater a dois ou três para não entediar as(os) leitoras(es). O primeiro é que crença ou descrença, filiação ou desfiliação religiosa integra a autonomia individual, o que significa dizer que compete soberanamente ao indivíduo, sem qualquer forma de coação ou coerção estatal, decidir se adere ou não, se permanece ou abandona uma religião. A qualquer dia, hora e independentemente de motivação, o indivíduo tem o direito de mudar de religião. Para o estado, aliás, é indiferente se a pessoa é crente ou descrente, fiel ou adepto. Crença e descrença são igualmente protegidas pela Constituição e todas as pessoas são consideradas por sua condição de cidadãs, eleitoras, ponto. De outro lado, o princípio da liberdade de organização religiosa significa que o Estado não está autorizado a intervir ou intrometer-se nas normas de funcionamento de uma religião. Anos atrás, em Goiás, um pastor foi obrigado a realizar o casamento religioso independentemente do fato de que a noiva encontrava-se grávida. Mesmo o pastor alegando que a gravidez desrespeitava norma religiosa, o Judiciário mandou arrombar as portas do templo e constrangeu o sacerdote. A pergunta é: adeptos veganos teriam direito a liminares contra abate religioso de animais no islamismo, no judaísmo ou na afrorreligiosidade? Adeptas poderão processar o islamismo pela obrigatoriedade do uso da burca? Reivindicar que o Estado tenha o direito de definir norma religiosa certamente não irá prejudicar as religiões que contam com bancadas parlamentares, prefeitos, governadores, conselhos tutelares, símbolos religiosos e ministros “terrivelmente evangélicos” no STF.  O mesmo não se pode dizer daquelas que não contam com simpatia por parte do poder: estas passarão a ser ainda mais asfixiadas pelas garras do Estado. De seu lado, recentemente o Supremo Tribunal Federal rejeitou uma ação que pretendia obrigar os yanomami a receber missionários que pretendem ingressar nessas comunidades com a finalidade de forçar, coagir a conversão religiosa, desrespeitando memória, história, identidade e dignidade tudo em nome da “civilizadora” e “salvadora” assimilação cultural. Utilizam-se da liberdade de crença (deles próprios, certamente) para satanizar e arruinar crença indígena protegida constitucionalmente. Disse o Supremo Tribunal Federal que a Constituição assegura o direito ao multiculturalismo, o respeito à diversidade de expressões culturais e o pluralismo ideológico. Para muitas denominações pentecostais, entretanto, multiculturalismo decerto deve ser visto como sinônimo de satanismo, primitivismo, maldição de Cam, selvageria, insalubridade.   O episódio da tal representação criminal me fez lembrar uma marchinha carnavalesca magistralmente explorada pelo grande intelectual e mestre Edson Cardoso para descrever a engenhosidade do racismo no Brasil. Diz a “marchinha”: “O seu cabelo não nega mulata, porque és mulata na cor. Mas como a cor não pega, mulata, mulata eu quero seu amor”. É sobre isso irmandade!!! Se eles querem somente uma parte

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Protocolo para julgamento com perspectiva racial: sensibilização ou dever funcional?

No artigo, o Dr. Hédio Silva Jr. reflete sobre o “Protocolo de Julgamento com Perspectiva Racial”, publicado pelo CNJ no último dia 19, destacando a necessidade de tratar o racismo como um desafio técnico e institucional, e não apenas ético. O autor enfatiza que o protocolo não busca criar julgamentos com viés racial, mas sim garantir análises imparciais e alinhadas à Constituição, considerando o racismo como um fator que influencia diretamente a Justiça. Para o Dr. Hédio Silva Jr., essa abordagem é um dever funcional, fundamental para aprimorar a credibilidade do Judiciário e fortalecer a democracia. Confira o artigo, direto no JusBrasil. É digno de elogio o esforço permanente do Conselho Nacional de Justiça – CNJ no tocante à edição de normativas destinadas ao aprimoramento do Poder Judiciário, democratização do acesso à Justiça e aperfeiçoamento da prestação jurisdicional. Vale recordar que há uma década era aprovada a desbravadora Resolução n. 203/15 que instituiu cotas no ingresso na magistratura, com base no entendimento fixado pelo Supremo Tribunal Federal na ADPF 186. Na seara do direito de igualdade racial pode-se destacar ainda, a título ilustrativo, a recomendação que reitera a proeminência dos tratados internacionais, do controle de convencionalidade e da observância da jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos; a resolução sobre direitos das vítimas e a resolução sobre liberdade de crença e enfrentamento da intolerância religiosa no âmbito do Poder Judiciário. Ao editar a Resolução n. 253, sobre direitos das vítimas, por exemplo, o CNJ proclamou uma arrojada e alentadora deliberação segundo a qual tradicionalmente o Poder Judiciário tende a desconsiderar a violência racial, v. g., nestes termos: Art. 1º. “O Poder Judiciário deverá, no exercício de suas competências, adotar as providências necessárias para garantir que as vítimas de crimes e atos infracionais sejam tratadas com equidade, dignidade e respeito pelos órgãos judiciários e de seus serviços auxiliares” Art. 6º. Os órgãos competentes do Poder Judiciário deverão promover a capacitação de magistrados (as), servidores (as), colaboradores (as) e estagiários (as) que atuarão nos Centros Especializados de Atenção à Vítima. § 2º. Os cursos de capacitação descritos neste artigo deverão adotar conteúdos direcionados para a atenção às violências tradicionalmente desconsideradas, tais como: racismo, violência sexual e de gênero, transfobia e homofobia, geracional, contra pessoas com deficiências, indígenas, quilombolas e refugiados. (Resolução CNJ n. 253, de 4 de setembro de 2018, que “Define a política institucional do Poder Judiciário de atenção e apoio às vítimas de crimes e atos infracionais”: Igualmente interessante é a resolução n. 60/2008, que instituiu o Código de Ética da Magistratura Nacional, segundo a qual: Art. 8º O magistrado imparcial é aquele que busca nas provas a verdade dos fatos, com objetividade e fundamento, mantendo ao longo de todo o processo uma distância equivalente das partes, e evita todo o tipo de comportamento que possa refletir favoritismo, predisposição ou preconceito. Art. 9º Ao magistrado, no desempenho de sua atividade, cumpre dispensar às partes igualdade de tratamento, vedada qualquer espécie de injustificada discriminação. Parágrafo único. Não se considera tratamento discriminatório injustificado: I – a audiência concedida a apenas uma das partes ou seu advogado, contanto que se assegure igual direito à parte contrária, caso seja solicitado; II – o tratamento diferenciado resultante de lei. Art. 29. A exigência de conhecimento e de capacitação permanente dos magistrados tem como fundamento o direito dos jurisdicionados e da sociedade em geral à obtenção de um serviço de qualidade na administração de Justiça. Art. 39. É atentatório à dignidade do cargo qualquer ato ou comportamento do magistrado, no exercício profissional, que implique discriminação injusta ou arbitrária de qualquer pessoa ou instituição.   Na esteira deste diligente empenho do CNJ, devemos aplaudir desde logo o “Protocolo de Julgamento com Perspectiva Racial”, uma proposta de resolução que decerto será referendada em breve pelo Plenário. Consiste o “Protocolo” em uma ferramenta apta a subsidiar a análise e solução de conflitos em que haja incidência direta ou reflexa de fatores e/ou motivações de natureza racial, cujo texto encontra-se estruturado no seguinte tripé: 1. Catálogo de parâmetros constitucionais, marcos legais, definições jurídicas e referenciais conceituais; 2. Quadro descritivo das intersecções entre o fenômeno do racismo, áreas de especialização do Direito e ramos da Justiça; 3. Método de abordagem destinado a instrumentalizar a apreciação imparcial e adoção de técnicas eficazes de equacionamento. Um exame exploratório do “Protocolo” permite a constatação de que a despeito do esmero da parte dispositiva e do conjunto da obra, os parâmetros constitucionais e o catálogo de conceitos e definições jurídicas contém lacunas e inexatidões que estão a merecer aperfeiçoamentos sobretudo se consideramos que o “Protocolo” institui balizas de hermenêutica, de interpretação. Mais que isso: o método de abordagem da problemática racial e suas inevitáveis conexões com a linguagem e a atividade de interpretação da lei convoca os operadores do direito a assumirem uma atitude desapaixonada frente ao racismo, considerando-o para além dos sentimentos pessoais. Não se trata de propor “julgamento na perspectiva do racismo” mas sim julgamento desonerado de perspectiva racial preconcebida, calcada em valores individuais e indiferente à lei, fatos, provas, fins sociais e exigências do bem comum (LINDB, art. 5o). Por este ângulo, a primeira observação a ser feita tem a ver com o fato de que o “Protocolo” responde a uma condenação do Brasil na Corte Interamericana no longíquo ano de 2006, em cujas recomendações consta o seguinte: “Adotar e instrumentalizar medidas de educação dos funcionários de justiça e da polícia afim de evitar ações que impliquem discriminação nas investigações, no processo ou na condenação civil ou penal das denúncias de discriminação racial e racismo” (Relatório n. 66/06, Caso 12.001, Mérito, Simone André Diniz x Brasil, 21.10.06) Trata-se do famoso “Caso Simone Diniz” derivado de um anúncio de jornal de grande circulação excluindo explicitamente candidatas negras no qual a polícia judiciária, o Ministério Público e o Judiciário não vislumbraram qualquer indício de violação de direitos. Embora tratado tangencialmente no “Protocolo”, o “Caso Simone Diniz” é no entanto absolutamente central como justificativa e, ao mesmo tempo, como diretriz da atual iniciativa do CNJ porquanto seu

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Política nacional para Povos de Terreiro será útil para área rural ou de preservação ambiental

O Decreto federal n. 12.278/2024 instituído pelo Presidente Lula no último dia 29 de novembro configura uma valiosa ferramenta na luta contra o racismo religioso especialmente porque reafirma a necessidade de “criar mecanismos de enfrentamento ao racismo e discriminação religiosa”. Mesmo sem descrever esses mecanismos e apontar prazos, metas e orçamento reservado para a política, o decreto fortalece a luta histórica do Povo de Terreiro.   Mas atenção: o decreto destina-se àquelas unidades “que ocupam e usam territórios e recursos naturais como condição para sua reprodução cultural, social, religiosa, ancestral e econômica” (art. 2º, § 1º). São os povos indígenas, quilombolas, mas também seringueiros, castanheiros, quebradeiras de coco-de-babaçu, pescadores artesanais, catadores de mangaba, entre outros. A esmagadora maioria destas comunidades situa-se em área rural, possui economia de subsistência (plantam e produzem para o próprio consumo) e tem tradição extrativista, isto é, extraem produtos da natureza destinando-os para finalidade comercial ou industrial. Foi justamente esta tradição extrativista que deu origem a expressão “comunidades tradicionais”. Há décadas o Brasil possui regras constitucionais, tratados internacionais, leis e decretos que utilizavam a expressão “populações tradicionais”, tratadas como unidades de conservação ambiental. Apesar de sua grande utilidade, o decreto presidencial obviamente não alcança 99% dos terreiros de Candomblé, Umbanda, Batuque, etc. os quais situam-se em área urbana, não têm economia de subsistência tampouco tradição extrativista. Há mais: o racismo religioso e seus lacaios insistem em negar às Religiões Afro-brasileiras o status jurídico de religião, previsto na Constituição Federal e no Estatuto da Igualdade Racial, sancionado pelo Presidente Lula em 2010. Como todos sabemos, um decreto federal não está acima da lei federal, no caso, o Estatuto da Igualdade Racial. Ainda assim anos atrás um Juiz Federal do Rio de Janeiro escreveu numa sentença que “As manifestações religiosas afro-brasileiras não se constituem em religiões (…)”. Por estas e várias outras razões devemos utilizar o decreto presidencial naquilo que ele pode ser útil mas não podemos abrir mão de lutar pelo reconhecimento das Religiões Afro-brasileiras como religião, no sentido jurídico do termo. Religião não pode ser reduzida nem confundida com unidade de conservação ambiental, comunidades de pescadores ou de quebradeiras de coco. Religião ou religiões afro-brasileiras são instituições mais complexas, imemoriais e estruturantes do que comunidades tradicionais, inclusive as comunidades quilombolas. Até que a Constituição Federal e as leis sejam alteradas, quem sabe criando o crime de “intolerância tradicional” em vez de “intolerância religiosa” as lideranças sérias devem continuar acreditando e difundindo a legislação vigente e os direitos que ela assegura a todas as confissões religiosas, inclusive a matriz africana.

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O que é o “Protocolo para Julgamento com Perspectiva Racial”?

No último dia 19 de novembro o Conselho Nacional de Justiça – CNJ aprovou relatório contendo proposta de resolução denominada “Protocolo de Julgamento com Perspectiva Racial”, sob relatoria do Conselheiro João Paulo Schoucair. Protocolo foi aprovado durante sessão de julgamento no CNJ presidida pelo ministro Luís Roberto Barroso, na terça-feira (19/11) (Crédito: G. Dettmar/Ag.CNJ) O documento foi elaborado por Grupo de Trabalho integrado por magistrados, servidores da Justiça, representantes do Ministério Público e da Defensoria Pública. Um dos principais objetivos do “Protocolo” anunciados pelo CNJ é “reduzir impactos do racismo na atuação da Justiça”, sendo certo que em breve o Plenário do Conselho deverá referendar a proposta, lembrando que resolução tem efeito vinculante. Consiste o “Protocolo” em uma ferramenta apta a subsidiar a análise e solução de litígios em que haja incidência direta ou reflexa de fatores e/ou motivações de natureza racial, cujo texto encontra-se estruturado no seguinte tripé: catálogo de parâmetros constitucionais, marcos legais, definições jurídicas e referenciais conceituais; quadro descritivo das intersecções entre o fenômeno do racismo, áreas de especialização do Direito e ramos da Justiça; método de abordagem destinado a instrumentalizar a apreciação imparcial e adoção de técnicas eficazes de equacionamento. Um exame exploratório do “Protocolo” permite a constatação de que a despeito do esmero da parte dispositiva e do conjunto da obra, os parâmetros constitucionais e o catálogo de conceitos e definições jurídicas contém lacunas e inexatidões que estão a merecer aperfeiçoamentos sobretudo se consideramos que o “Protocolo” institui balizas de hermenêutica, de interpretação. Mais que isso: o método de abordagem da problemática racial e suas inevitáveis conexões com a linguagem e a atividade de interpretação da lei convoca os operadores do direito a assumirem uma atitude desapaixonada frente ao racismo, considerando-o para além dos sentimentos pessoais. Não se trata de propor “julgamento na perspectiva do racismo” mas sim julgamento desonerado de perspectiva racial preconcebida, calcada em valores individuais e indiferente à lei, fatos, provas, fins sociais e exigências do bem comum (LINDB, art. 5o).   A partir de hoje o Dr. Hédio Silva Jr. irá publicar uma série de artigos sobre o “Protocolo de Julgamento com Perspectiva Racial”, sendo que a live programada para hoje à noite irá tratar desta arrojada e promissora inovação do Judiciário brasileiro. Facebook Instagram Youtube

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Você sabia que a tortura racial é espécie de crime racial?

 Ao contrário do que normalmente se supõe, a legislação brasileira sobre crime racial vai além da Lei 7.716/89, a Lei Caó. A tortura racial ou religiosa, isto é, praticada exclusivamente por discriminação racial ou religiosa (Lei 9.455, art. 1º, inciso I, alínea “c”) é um exemplo.Outro exemplo de crime racial é a escravização motivada por preconceito racial ou religioso (Código Penal, art. 149, § 2º, inciso II).  O eufemismo da norma penal “reduzir a condição análoga de escravo” não esconde o óbvio: quem trata ser humano como escravo é escravizador. Ponto final. A competência pode ser da Justiça Federal ou da Justiça Estadual, a depender do caso concreto. Também o terrorismo religioso ou racial (Lei n. 13.260/16, art. 2º, caput, inciso V) integra o catálogo das infrações penais raciais. Veja-se por exemplo os ataques contra terreiros localizados na Baixada Fluminense e outras localidades. Grupos de delinquentes armados torturam e coagem lideranças religiosas a destruir objetos religiosos. As imagens são gravadas e veiculadas em redes sociais com o propósito deliberado de provocar terror social e generalizado. O genocídio constitui igualmente espécie de crime racial  Previsto na Lei n. 2.889.56, como também em tratado internacional em vigor e no Código Penal Militar, o genocídio consiste em destruir total ou parcialmente grupo racial ou religioso ou causar grave lesão física ou mental a membros destes grupos. No caso de indígenas, a competência é da Justiça Federal, mas em regra esse delito é processado e julgado por Juiz singular estadual. Além desses delitos há ainda os crimes de perseguição religiosa ou racial, deslocamento forçado de pessoas (como no caso das lideranças afrorreligiosas expulsas da Baixada Fluminense) e o delito de apartheid, todos disciplinados no Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional, ratificado por meio do Decreto n. 4.388/2002. Dominar o vasto aparato jurídico de promoção da igualdade e de punição da discriminação racial e religiosa amplia sobremaneira a probabilidade de êxito judicial das vítimas. Facebook Instagram Youtube

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Arquivamento de inquérito de crime racial depende de parecer da vítima

Ao editar a Resolução n. 253/2018, o Conselho Nacional de Justiça – CNJ  reconheceu com todas as letras que “tradicionalmente o Poder Judiciário tende a desconsiderar a violência do racismo”. Embora não possa ser generalizado, esse desapreço pelas vítimas de delito racial ou religioso poder ser examinado por vários ângulos. Na esfera civil, por exemplo, recentemente um Juiz de Direito citou comoventes “juramentos antirracistas” na sentença para condenar um condomínio de luxo a pagar a mísera quantia de 20 mil reais a um visitante negro humilhado durante longos minutos na portaria do residencial. Seriam vinte mil reais suficientes para desestimular um condomínio de luxo a voltar a discriminar, conforme determina o STJ? Não é preciso ser versado no tal de letramento racial para arriscar uma resposta aceitável. Já na seara criminal, a jurisprudência inventiva realiza desengonçados contorcionismos interpretativos visando tornar o delito racial um crime de bagatela, dando de ombros à Constituição Federal, tratados em vigor e leis federais.  Esse tipo de acrobacia interpretativa, por assim dizer, é cansativo e antigo. Lembremos que a primeira condenação do Brasil na Corte Interamericana de Direitos Humanos, por discriminação racial, resultou justamente do fato de o Ministério Público paulista concluir que um anúncio de emprego manifestamente racista não teria qualquer relevância jurídica.  O inquérito policial terminou arquivado e a guerreira negra Simone Diniz recorreu à Corte e obteve uma vitória histórica, sob a batuta dos exímios advogados Flávia Piovesan e Sinvaldo José Firmo. Estávamos em 1997 e à época o arquivamento não admitia qualquer tipo de recurso. Em 2019 esse quadro pode ter mudado significativamente, em benefício das vítimas, com a aprovação da lei 13.964/19. A partir do julgamento das ADI´s 6298, 6299, 6300 e 6305, pelo STF, o Ministério Público é obrigado a notificar a vítima caso entenda que o inquérito deva ser arquivado. O Judiciário somente poderá homologar o arquivamento após recurso da  vítima e reapreciação da matéria por instâncias superiores do Ministério Público. Trata-se de instrumento de controle social sobre o processo penal imprescindível num país em que incontáveis atores do sistema de Justiça tendem a desconsiderar fatos, provas e normas jurídicas substituindo-as por suas convicções raciais. Cabe aos(às) advogados(as) das vítimas aprimorarmos nossa atuação e assumirmos papel proativo na disputa pela interpretação do sistema jurídico, sem a qual a impunidade prosseguirá prevalecendo quando o assunto é violação de direitos motivada por clivagem racial ou religiosa. Caso o(a) leitor(a) tenha interesse nesses temas, fique atento(a) ao lançamento do nosso curso “Prática Jurídica em Casos de Discriminação Racial e Religiosa”.

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Perturbação de sossego: arma de guerra contra Religiões Afro

Um livro publicado em 2019 pelos advogados Cristiano Zanin, Valeska Martins e Rafael Valim, então defensores do Presidente Lula, popularizou no Brasil a expressão lawfare, “guerra jurídica”.Lawfare significa uso do aparato jurídico para fins ilícitos, arbitrários; é a tirania, o abuso, a perseguição envernizada de legalidade.Daí o título desse artigo: a contravenção penal de perturbação de sossego foi transformada por setores neopentecostais em verdadeira arma de guerra contra as religiões afro-brasileiras. O problema se agrava pelo fato de que frequentemente esse estratagema acaba sendo validado, por assim dizer, por delegados de polícia, promotores e juízes.Meses atrás viralizou nas redes um vídeo no qual maus policiais constrangiam um sacerdote do Candomblé, forçando-o a retirar adereço religioso e obrigando-o a acomodar-se no cubículo do “camburão”, o navio negreiro dos nossos dias. Vamos por partes. Templo religioso é equiparado a domicílio e dado que contravenção penal não é sinônimo de crime, a polícia não poderia invadir o terreiro porque não existe prisão em flagrante de perturbação de sossego.Não sendo admitida voz de prisão, bastaria o deslocamento do sacerdote até a Delegacia (a rigor, até o Juizado), o que poderia ser feito inclusive no seu próprio veículo.Segundo a lei, sequer é necessária instauração de inquérito policial, bastando o termo circunstanciado. Há mais. Diz a Lei das Contravenções Penais que a tal perturbação deve ser do “sossego alheios”, no plural, por isso a jurisprudência exige pluralidade de vítimas, vários reclamantes e não um único incomodado.No dia a dia, entretanto, um único vizinho, normalmente um neopentecostal, utiliza a lei e o sistema de Justiça para asfixiar, perseguir e atazanar os terreiros. Recentemente obtivemos uma liminar em Habeas Corpus que cassou sentença do Juizado Criminal do Pará que pretendia expulsar uma Sacerdotisa Umbandista de sua residência à qual é anexado um templo.Trata-se de vitória histórica e que comprova que o mesmo direito que oprime pode ser um instrumento de libertação. Nos próximos artigos falaremos mais sobre esse e vários outros casos em que atuamos, “pro bono” em defesa da igualdade racial e da liberdade de crença.

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Caso Lélia Gonzalez

“Leia o Inteiro Teor” “ O acervo da ativista e filósofa mineira Lélia Gonzalez (1935-1994) está sob disputa judicial. Seus sobrinhos, Rubens Luiz Rufino e Eliane de Almeida, pediram à Justiça a sua apropriação, em janeiro de 2022, com o objetivo de entregá-lo à FGV (Fundação Getúlio Vargas).”…“No documento de doação fica registrado o descaso das instituições do Estado com o material. E isso é que leva à construção do memorial dentro do terreiro”, ressalta Silvana Santana, mestra em história da África e ekedi (cargo feminino no candomblé), e também uma das pessoas mais próximas do acervo hoje.”… “O advogado Hédio Silva Júnior, que representa o terreiro na ação, argumenta que o terreiro já tem direito ao acervo uma vez que o direito de herança prescreveu em 2014. Para ele, o intuito do processo, depois de tantos anos, é financeiro, já que Lélia passou a ser reconhecida nacionalmente.”“Descobrimos que o Rubens [sobrinho], antes de ingressar com ação, teve a preocupação de registrar no Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI), a marca Lélia González”, argumenta. Confira a matéria na íntegra: https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/redacao/2024/03/22/terreiro-disputa-na-justica-acervo-de-lelia-gonzalez-que-pode-ir-para-fgv.htm

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