Essa semana as redes sociais anunciaram que adeptos de uma denominação neopentecostal representaram criminalmente contra preceito religioso que proíbe penteado afro. A representação é um equívoco jurídico completo. O assunto comportaria múltiplos recortes mas vou me ater a dois ou três para não entediar as(os) leitoras(es). O primeiro é que crença ou descrença, filiação ou desfiliação religiosa integra a autonomia individual, o que significa dizer que compete soberanamente ao indivíduo, sem qualquer forma de coação ou coerção estatal, decidir se adere ou não, se permanece ou abandona uma religião. A qualquer dia, hora e independentemente de motivação, o indivíduo tem o direito de mudar de religião. Para o estado, aliás, é indiferente se a pessoa é crente ou descrente, fiel ou adepto. Crença e descrença são igualmente protegidas pela Constituição e todas as pessoas são consideradas por sua condição de cidadãs, eleitoras, ponto. De outro lado, o princípio da liberdade de organização religiosa significa que o Estado não está autorizado a intervir ou intrometer-se nas normas de funcionamento de uma religião. Anos atrás, em Goiás, um pastor foi obrigado a realizar o casamento religioso independentemente do fato de que a noiva encontrava-se grávida. Mesmo o pastor alegando que a gravidez desrespeitava norma religiosa, o Judiciário mandou arrombar as portas do templo e constrangeu o sacerdote. A pergunta é: adeptos veganos teriam direito a liminares contra abate religioso de animais no islamismo, no judaísmo ou na afrorreligiosidade? Adeptas poderão processar o islamismo pela obrigatoriedade do uso da burca? Reivindicar que o Estado tenha o direito de definir norma religiosa certamente não irá prejudicar as religiões que contam com bancadas parlamentares, prefeitos, governadores, conselhos tutelares, símbolos religiosos e ministros “terrivelmente evangélicos” no STF. O mesmo não se pode dizer daquelas que não contam com simpatia por parte do poder: estas passarão a ser ainda mais asfixiadas pelas garras do Estado. De seu lado, recentemente o Supremo Tribunal Federal rejeitou uma ação que pretendia obrigar os yanomami a receber missionários que pretendem ingressar nessas comunidades com a finalidade de forçar, coagir a conversão religiosa, desrespeitando memória, história, identidade e dignidade tudo em nome da “civilizadora” e “salvadora” assimilação cultural. Utilizam-se da liberdade de crença (deles próprios, certamente) para satanizar e arruinar crença indígena protegida constitucionalmente. Disse o Supremo Tribunal Federal que a Constituição assegura o direito ao multiculturalismo, o respeito à diversidade de expressões culturais e o pluralismo ideológico. Para muitas denominações pentecostais, entretanto, multiculturalismo decerto deve ser visto como sinônimo de satanismo, primitivismo, maldição de Cam, selvageria, insalubridade. O episódio da tal representação criminal me fez lembrar uma marchinha carnavalesca magistralmente explorada pelo grande intelectual e mestre Edson Cardoso para descrever a engenhosidade do racismo no Brasil. Diz a “marchinha”: “O seu cabelo não nega mulata, porque és mulata na cor. Mas como a cor não pega, mulata, mulata eu quero seu amor”. É sobre isso irmandade!!! Se eles querem somente uma parte de você mas rejeitam sua identidade, o nome disso é compaixão, caridade, comiseração, algo impossível de ser disciplinado pelo Direito. Simples assim!!! Hédio Silva Jr., Advogado, Mestre e Doutor em Direito pela PUC-SP, fundador do JusRacial Essa semana as redes sociais anunciaram que adeptos de uma denominação neopentecostal representaram criminalmente contra preceito religioso que proíbe penteado afro. A representação é um equívoco jurídico completo. O assunto comportaria múltiplos recortes mas vou me ater a dois ou três para não entediar as(os) leitoras(es). O primeiro é que crença ou descrença, filiação ou desfiliação religiosa integra a autonomia individual, o que significa dizer que compete soberanamente ao indivíduo, sem qualquer forma de coação ou coerção estatal, decidir se adere ou não, se permanece ou abandona uma religião. A qualquer dia, hora e independentemente de motivação, o indivíduo tem o direito de mudar de religião. Para o estado, aliás, é indiferente se a pessoa é crente ou descrente, fiel ou adepto. Crença e descrença são igualmente protegidas pela Constituição e todas as pessoas são consideradas por sua condição de cidadãs, eleitoras, ponto. De outro lado, o princípio da liberdade de organização religiosa significa que o Estado não está autorizado a intervir ou intrometer-se nas normas de funcionamento de uma religião. Anos atrás, em Goiás, um pastor foi obrigado a realizar o casamento religioso independentemente do fato de que a noiva encontrava-se grávida. Mesmo o pastor alegando que a gravidez desrespeitava norma religiosa, o Judiciário mandou arrombar as portas do templo e constrangeu o sacerdote. A pergunta é: adeptos veganos teriam direito a liminares contra abate religioso de animais no islamismo, no judaísmo ou na afrorreligiosidade? Adeptas poderão processar o islamismo pela obrigatoriedade do uso da burca? Reivindicar que o Estado tenha o direito de definir norma religiosa certamente não irá prejudicar as religiões que contam com bancadas parlamentares, prefeitos, governadores, conselhos tutelares, símbolos religiosos e ministros “terrivelmente evangélicos” no STF. O mesmo não se pode dizer daquelas que não contam com simpatia por parte do poder: estas passarão a ser ainda mais asfixiadas pelas garras do Estado. De seu lado, recentemente o Supremo Tribunal Federal rejeitou uma ação que pretendia obrigar os yanomami a receber missionários que pretendem ingressar nessas comunidades com a finalidade de forçar, coagir a conversão religiosa, desrespeitando memória, história, identidade e dignidade tudo em nome da “civilizadora” e “salvadora” assimilação cultural. Utilizam-se da liberdade de crença (deles próprios, certamente) para satanizar e arruinar crença indígena protegida constitucionalmente. Disse o Supremo Tribunal Federal que a Constituição assegura o direito ao multiculturalismo, o respeito à diversidade de expressões culturais e o pluralismo ideológico. Para muitas denominações pentecostais, entretanto, multiculturalismo decerto deve ser visto como sinônimo de satanismo, primitivismo, maldição de Cam, selvageria, insalubridade. O episódio da tal representação criminal me fez lembrar uma marchinha carnavalesca magistralmente explorada pelo grande intelectual e mestre Edson Cardoso para descrever a engenhosidade do racismo no Brasil. Diz a “marchinha”: “O seu cabelo não nega mulata, porque és mulata na cor. Mas como a cor não pega, mulata, mulata eu quero seu amor”. É sobre isso irmandade!!! Se eles querem somente uma parte
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