Levantamento concluído no último mês pelo Jusracial demonstra um alentador aumento de 17.000% no número de processos judiciais sobre racismo, incluindo intolerância religiosa, nos últimos 14 anos.
Em 2009, ano em que coordenamos a penúltima compilação nacional, detectamos cerca de mil processos em tramitação na Justiça comum e trabalhista.
A propósito, nossa primeira experiência nesta seara hoje denominada jurimetria remonta a 1997: atuando em nome de uma ong negra da qual fui um dos fundadores, naquele ano enviamos cartas para os 27 tribunais estaduais do país.
Interessava-nos informações sobre processos relacionados com “preconceito racial”, no período compreendido entre 1951 (ano de edição da finada Lei Afonso Arinos) a 1988.
Foram necessários meses, insistentes correspondências e inúmeros telefonemas para que lográssemos localizar nove julgados, repito, nove processos num período de quase quatro décadas.
Comprovando a vigorosa mudança social liderada pelo Movimento Negro brasileiro nas últimas décadas, ano passado localizamos cerca de 176.000 processos em tramitação em todos os ramos da Justiça, incluindo os tribunais superiores (tabelas preliminares disponíveis no site www.jusracial.com.br).
A base de dados foi prospectada no repositório do Jusbrasil e extraída de pesquisa direta nos sites dos tribunais, de modo que contabiliza processos julgados e em tramitação nas diferentes instâncias.
Foi necessária a combinação de um conjunto de palavras-chaves no exercício de busca, objetivando assegurar máxima amplitude e integridade do conteúdo.
A junção de ilícito racial e ilícito religioso é compatível com o regramento civil, trabalhista e inclusive criminal da matéria, visto que desde 2003 o STF qualifica a discriminação religiosa como espécie do gênero racismo.
Ademais, desde 2019 o pleno do STF passou a catalogar a homofobia e transfobia como modalidades de crime de racismo.
Dois anos depois, em 2021, a Corte Suprema deliberou que ofensa verbal motivada por homofobia ou transfobia configura injúria racial, ocasião em que o autor dessas linhas teve a honra de dividir a tribuna do STF com o Dr. Paulo Lotti, exímio advogado e conselheiro do Jusracial.
Registradas estas premissas devemos assinalar que as tabelas ora divulgadas, ainda em estado bruto, serão exploradas em um amplo leque de análises jurimétricas que capturem tendências, invariantes e recorrências incidentes em processos cíveis, trabalhistas e criminais, visando robustecer o trabalho da advocacia.
Ao longo das próximas semanas iremos publicar neste blog comentários com diferentes recortes ancorados no material no estágio em que se encontra.
Não temos dúvidas de que 176 mil processos correspondem a uma fração ínfima dos casos de violações de direitos que diariamente assolam a população negra e adeptos das religiões afro-brasileiras, alvo preferencial do discurso de ódio e da intolerância religiosa.
Mas é igualmente verdadeiro que a ampliação exponencial da judicialização indica uma promissora elevação do otimismo e confiança das vítimas no Poder Judiciário.
Numa primeira aproximação, devemos lembrar que a Comissão Parlamentar de Inquérito da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (Res. n.382/2021), cujo relator foi o aguerrido Deputado Átila Nunes, constatou que somente entre 2015 e 2019 a Polícia Civil carioca “registrou cerca de 6.700 crimes cuja motivação está associada à intolerância religiosa” (Relatório, fls. 23).
No entanto, nosso levantamento constata que no ano passado tramitavam no TJRJ menos de 1.500 processos sobre intolerância religiosa, um número correspondente a menos de 25% dos registros policiais ocorridos quatro anos antes.
Não bastassem portanto as altas taxas de subnotificação deste tipo de crime, também constatadas pela mencionada CPI, os indícios sinalizam que um dos gargalos pode localizar-se precisamente na “porta de entrada” do sistema penal.
Mas não somente na jurisdição criminal; o elevado número de ações trabalhistas desperta interesse sobre o manejo ou não, por parte de advogados e juízes, das normas da Convenção 111 da OIT que desoneram o empregado da produção de prova de dolo ou culpa.
Trata-se de normativa em vigor desde os anos 60, hierarquicamente superior às leis trabalhistas, cuja efetividade diz respeito ao menor ou maior grau de obstáculos processuais enfrentados pelas vítimas em sua luta por reparação, igualdade e Justiça.
Este será o principal escopo da produção do Jusracial a partir dos dados coletados, cujo objetivo último é contribuir para o aprimoramento da litigância e da própria administração da Justiça.
HÉDIO SILVA JR.
jan/2024