Ser favorável à Iemanjá não é o mesmo que ser contra Cristo

Nas últimas décadas o Brasil vivencia o crescimento do discurso maniqueísta do bem contra o mal, Cristo x diabo, gospel contra o demônio. Determinados segmentos religiosos fizeram do discurso de guerra e do ódio religioso o seu modus operandi: difunde-se o medo como forma de multiplicar dízimos, votos, bancadas parlamentares, ministros no STF e fortunas pessoais. A coisa vai bem. Segundo o Censo 2022, o Brasil possui cerca de 580 mil estabelecimentos religiosos contra 265 mil de ensino e 248 mil de saúde; isto é, o número de entidades religiosas representa mais do que o dobro do número de instituições educacionais. Contra essa ganância por “almas”, digamos assim, há alguns anos o Supremo Tribunal Federal (STF) determinou que nenhuma pessoa pode ser coagida, constrangida ou obrigada a adotar ou não adotar religião ou crença. Mais recentemente, nossa Suprema Corte deliberou que não se pode apagar e retirar símbolos religiosos de prédios públicos. Segundo o Supremo, o crucifixo não representaria um símbolo religioso mas uma tradição cultural. Ocorre que do ponto de vista jurídico, da Constituição Federal, a tradição cultural do crucifixo não é menos nem mais relevante do que a tradição afrorreligiosa de “jogar flores para Iemanjá”. Tal como não se pode apagar símbolo religioso de prédio público não se pode apagar a tradição cultural de reverência à Iemanjá, sobretudo se consideramos que em Salvador/BA a Festa de Iemanjá (02 de fevereiro) é considerada patrimônio cultural. Aqui fica evidente a ilegalidade da mutilação e do apagamento de Iemanjá do repertório de Cláudia Leitte, fato que levou o Ministério Público da Bahia a instaurar inquérito civil, a nosso pedido. Diz a letra da música: “Maré tá cheia, espera esvaziarJoga flores no marSaudando a rainha Iemanjá” O significado cultural da estrofe é evidente: absolutamente nada a ver com cristianismo; tudo a ver, rigorosamente, com Orixá e com a Festa de Iemanjá, uma das mais populares da Bahia. Ser a favor de Iemanjá não significa ser contra Cristo ou quem quer que seja. Quem conhece a história das religiões afro-brasileiras, aliás, sabe que elas nunca foram contra qualquer religião. O contrário, entretanto, não é verdadeiro. Para desgosto dos racistas, a Constituição da República continua em vigor e o Judiciário ainda não foi dominado por juízes terrivelmente evangélicos.

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STF, Crucifixo e Iemanjá

Semanas atrás o Supremo Tribunal Federal – STF determinou, por votação unânime, que não se pode apagar, retirar símbolos religiosos de prédios públicos. Segundo a Corte Suprema, o crucifixo não representaria um símbolo religioso mas uma tradição cultural, um símbolo cultural. A despeito da solidez jurídica da maioria das decisões do STF, a tese de que crucifixo não remete à religião, mas à cultura, ignora o dado elementar de que religião é manifestação cultural, religião é cultura. Decretar que crucifixo teria deixado de ser símbolo religioso, portanto, além de inútil, em nada diminui seu vínculo com o cristianismo, religião que deveria ser tratada sem quaisquer privilégios ou regalias conforme manda a Constituição Federal. A despeito do desacerto da Corte Suprema, interessa-nos extrair deste julgado o conceito de “tradição cultural” como um bem jurídico que não pode ser descaracterizado, desfigurado, mutilado, apagado.Em julgamento recente sobre o suposto direito ao esquecimento, por exemplo, o mesmo STF deliberou: “É incompatível com a Constituição a ideia de um direito ao esquecimento, assim entendido como o poder de obstar, em razão da passagem do tempo, a divulgação de fatos ou dados verídicos e licitamente obtidos e publicados em meios de comunicação social, analógicos ou digitais”.​ Neste ponto evidencia-se a ilegalidade da mutilação, do apagamento de Iemanjá do repertório de Cláudia Leitte, fato que levou o Ministério Público da Bahia a instaurar inquérito civil, a nosso pedido. Diz a letra da música: “Maré tá cheia, espera esvaziar. Joga flores no mar. Saudando a rainha Iemanjá” ​ O significado cultural da estrofe é evidente: absolutamente nada a ver com cristianismo; tudo a ver, rigorosamente, com Orixá e com a Festa de Iemanjá, uma das mais populares da Bahia. Sem esquecermos do famoso ritual do revéillon, igualmente derivado da cultura afro-brasileira. Ocorre que a Constituição Federal protege o legado civilizatório africano em várias dimensões do direito à memória, o direito à história: 1. fixação de datas comemorativas de alta significação para os diferentes segmentos étnicos nacionais;2. tombamento de todos os documentos e sítios detentores de reminiscências dos antigos quilombos;3. obrigatoriedade da inclusão, no ensino da história, das contribuições das diferentes culturas e etnias para a formação do povo brasileiro. Não se pode falar portanto em licença poética, em direito de autor, em liberdade de expressão numa canção reproduzida à exaustão durante décadas e cuja mudança atende a um único propósito: ultrajar e vilipendiar a memória africana, bem cultural de origem africana e expresso na religiosidade afro-brasileira. A mesma matriz africana, lembremos, da qual nasceu o gênero musical “axé, ou “axé music” com base no qual a cantora acumula fortunas sem qualquer preocupação em congregar-se ao gênero gospel. É sobre tudo isso e muito mais que irão se debruçar as investigações do Ministério Público da Bahia.

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