Protocolo para julgamento com perspectiva racial: sensibilização ou dever funcional?

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No artigo, o Dr. Hédio Silva Jr. reflete sobre o “Protocolo de Julgamento com Perspectiva Racial”, publicado pelo CNJ no último dia 19, destacando a necessidade de tratar o racismo como um desafio técnico e institucional, e não apenas ético.

O autor enfatiza que o protocolo não busca criar julgamentos com viés racial, mas sim garantir análises imparciais e alinhadas à Constituição, considerando o racismo como um fator que influencia diretamente a Justiça.

Para o Dr. Hédio Silva Jr., essa abordagem é um dever funcional, fundamental para aprimorar a credibilidade do Judiciário e fortalecer a democracia.

Confira o artigo, direto no JusBrasil.

É digno de elogio o esforço permanente do Conselho Nacional de Justiça – CNJ no tocante à edição de normativas destinadas ao aprimoramento do Poder Judiciário, democratização do acesso à Justiça e aperfeiçoamento da prestação jurisdicional.

Vale recordar que há uma década era aprovada a desbravadora Resolução n. 203/15 que instituiu cotas no ingresso na magistratura, com base no entendimento fixado pelo Supremo Tribunal Federal na ADPF 186.

Na seara do direito de igualdade racial pode-se destacar ainda, a título ilustrativo, a recomendação que reitera a proeminência dos tratados internacionais, do controle de convencionalidade e da observância da jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos; a resolução sobre direitos das vítimas e a resolução sobre liberdade de crença e enfrentamento da intolerância religiosa no âmbito do Poder Judiciário.

Ao editar a Resolução n. 253, sobre direitos das vítimas, por exemplo, o CNJ proclamou uma arrojada e alentadora deliberação segundo a qual tradicionalmente o Poder Judiciário tende a desconsiderar a violência racial, v. g., nestes termos:

Art. 1º. “O Poder Judiciário deverá, no exercício de suas competências, adotar as providências necessárias para garantir que as vítimas de crimes e atos infracionais sejam tratadas com equidade, dignidade e respeito pelos órgãos judiciários e de seus serviços auxiliares”

Art. 6º. Os órgãos competentes do Poder Judiciário deverão promover a capacitação de magistrados (as), servidores (as), colaboradores (as) e estagiários (as) que atuarão nos Centros Especializados de Atenção à Vítima.

§ 2º. Os cursos de capacitação descritos neste artigo deverão adotar conteúdos direcionados para a atenção às violências tradicionalmente desconsideradas, tais como: racismo, violência sexual e de gênero, transfobia e homofobia, geracional, contra pessoas com deficiências, indígenas, quilombolas e refugiados. (Resolução CNJ n. 253, de 4 de setembro de 2018, que “Define a política institucional do Poder Judiciário de atenção e apoio às vítimas de crimes e atos infracionais”:

Igualmente interessante é a resolução n. 60/2008, que instituiu o Código de Ética da Magistratura Nacional, segundo a qual:

Art. 8º O magistrado imparcial é aquele que busca nas provas a verdade dos fatos, com objetividade e fundamento, mantendo ao longo de todo o processo uma distância equivalente das partes, e evita todo o tipo de comportamento que possa refletir favoritismo, predisposição ou preconceito.


Art. 9º Ao magistrado, no desempenho de sua atividade, cumpre dispensar às partes igualdade de tratamento, vedada qualquer espécie de injustificada discriminação.


Parágrafo único. Não se considera tratamento discriminatório injustificado:


I – a audiência concedida a apenas uma das partes ou seu advogado, contanto que se assegure igual direito à parte contrária, caso seja solicitado;


II – o tratamento diferenciado resultante de lei.


Art. 29. A exigência de conhecimento e de capacitação permanente dos magistrados tem como fundamento o direito dos jurisdicionados e da sociedade em geral à obtenção de um serviço de qualidade na administração de Justiça.


Art. 39. É atentatório à dignidade do cargo qualquer ato ou comportamento do magistrado, no exercício profissional, que implique discriminação injusta ou arbitrária de qualquer pessoa ou instituição.

 

Na esteira deste diligente empenho do CNJ, devemos aplaudir desde logo o “Protocolo de Julgamento com Perspectiva Racial”, uma proposta de resolução que decerto será referendada em breve pelo Plenário.

Consiste o “Protocolo” em uma ferramenta apta a subsidiar a análise e solução de conflitos em que haja incidência direta ou reflexa de fatores e/ou motivações de natureza racial, cujo texto encontra-se estruturado no seguinte tripé:

1. Catálogo de parâmetros constitucionais, marcos legais, definições jurídicas e referenciais conceituais;

2. Quadro descritivo das intersecções entre o fenômeno do racismo, áreas de especialização do Direito e ramos da Justiça;

3. Método de abordagem destinado a instrumentalizar a apreciação imparcial e adoção de técnicas eficazes de equacionamento.

Um exame exploratório do “Protocolo” permite a constatação de que a despeito do esmero da parte dispositiva e do conjunto da obra, os parâmetros constitucionais e o catálogo de conceitos e definições jurídicas contém lacunas e inexatidões que estão a merecer aperfeiçoamentos sobretudo se consideramos que o “Protocolo” institui balizas de hermenêutica, de interpretação.

Mais que isso: o método de abordagem da problemática racial e suas inevitáveis conexões com a linguagem e a atividade de interpretação da lei convoca os operadores do direito a assumirem uma atitude desapaixonada frente ao racismo, considerando-o para além dos sentimentos pessoais.

Não se trata de propor “julgamento na perspectiva do racismo” mas sim julgamento desonerado de perspectiva racial preconcebida, calcada em valores individuais e indiferente à lei, fatos, provas, fins sociais e exigências do bem comum (LINDB, art. 5o).

Por este ângulo, a primeira observação a ser feita tem a ver com o fato de que o “Protocolo” responde a uma condenação do Brasil na Corte Interamericana no longíquo ano de 2006, em cujas recomendações consta o seguinte:

“Adotar e instrumentalizar medidas de educação dos funcionários de justiça e da polícia afim de evitar ações que impliquem discriminação nas investigações, no processo ou na condenação civil ou penal das denúncias de discriminação racial e racismo” (Relatório n. 66/06, Caso 12.001, Mérito, Simone André Diniz x Brasil, 21.10.06)

Trata-se do famoso “Caso Simone Diniz” derivado de um anúncio de jornal de grande circulação excluindo explicitamente candidatas negras no qual a polícia judiciária, o Ministério Público e o Judiciário não vislumbraram qualquer indício de violação de direitos.

Embora tratado tangencialmente no “Protocolo”, o “Caso Simone Diniz” é no entanto absolutamente central como justificativa e, ao mesmo tempo, como diretriz da atual iniciativa do CNJ porquanto seu relatório aponta expressamente o recorrente problema da negativa de prestação jurisdicional em casos de ilícito racial, senão vejamos:

70. Não obstante a evolução penal no que tange ao combate à discriminação racial no Brasil, a Comissão tem conhecimento que a impunidade ainda é a tônica nos crimes raciais. Quando publicou relatório sobre a situação dos direitos humanos no país, a Comissão chamou a atenção para a difícil aplicação da Lei n. 7.716/89 e como a Justiça brasileira tendia a ser condescendente com a prática de discriminação racial e que dificilmente condenava um branco por discriminação. Com efeito, uma análise do racismo através do Poder Judiciário poderia levar à falsa impressão de que no Brasil não ocorrem práticas discriminatórias.

71. Também o Comitê que fiscaliza a Convenção Racial da ONU, em suas Observações Finais a respeito do Relatório submetido pelo Brasil, deixou clara sua preocupação com a difundida ocorrência de ofensas discriminatórias e a inaplicabilidade da legislação doméstica para combater os crimes raciais.

72. Nessa oportunidade o Comitê recomendou ao Estado brasileiro que coletasse dados estatísticos sobre investigações abertas e sanções impostas, bem como recomendou que o governo melhorasse programas de treinamento e conscientização sobre a existência e o tratamento de crimes racistas por parte das pessoas envolvidas na administração de justiça, incluindo juízes, promotores, advogados e policiais.

73. Os peticionários assinalam que a maioria das denúncias de crimes de preconceito e discriminação racial não se convertem em processos criminais e dos poucos processados, um número ínfimo de perpetradores dos crimes é condenado.

Não se ignora que o “Protocolo” não se limita a casos de ilícito racial nos quais a vítima seja negra mas é indene de dúvidas de que no “Caso Simone Diniz” a Corte Interamericana chamou atenção para o problema da tendenciosidade dos pronunciamentos judiciais decorrente do racismo lato sensu.

Já no que se refere aos parâmetros constitucionais, o “Protocolo” deve mencionar prescrições essenciais, das quais destacaremos apenas alguns exemplos:

• A inscrição da vedação ao racismo nos princípios constitucionais sensíveis autoriza a excepcional medida da intervenção federal ou estadual para cessar violações de direito motivadas por discrímen racial ilícito, merecendo atenção as hipóteses de intervenção que dependem de pronunciamento judicial;

• Foi precisamente com base nos princípios fundamentais que recentemente a 2a Turma do STF proibiu a aplicação do Acordo de Não-Persecução Penal – ANPP aos crimes raciais;

• Ademais, a existência de mandado convencional de criminalização da discriminação racial pode atrair a atribuição investigatória da polícia federal, prevista constitucionalmente, ou mesmo o incidente de deslocamento de competência;

• No tópico igualdade, impõe-se referir os paradigmáticos precedentes da ADPF 186 e ADC 41, nos quais o STF assentou a constitucionalidade das ações afirmativas inclusive empregando os conceitos de “discriminação reversa” ou “discriminação positiva”;

• Outro parâmetro constitucional inafastável refere-se ao único adjetivo pátrio grafado no Texto Constitucional, “afro-brasileiro”, imprescindível inclusive para as searas do direito à memória e do patrimônio cultural. No tocante por exemplo ao direito à memória, é equivocado referir o art. 26-A da LDB como fonte do direito à história: resultante da ação do Movimento Negro na Assembleia Nacional Constituinte, essa matéria foi inscrita no texto original da Constituição Federal (art. 242, § 1o) bem como na primeva redação da LDB (art. 26, §§ 4o e 10).

• Tendo em conta as características próprias da Justiça Militar e a ampliação do conceito de crime militar decorrente da lei 13.491/17, afigura-se essencial a criação de um tópico destinado a este ramo da justiça;

• Há de ser criado ainda, a nosso juízo, um tópico sobre o direito tributário, notadamente as legítimas demandas das religiões afro-brasileiras no que tange às imunidades e isenções fiscais, lembrando que a tutela civil e penal da discriminação racial contempla expressamente a discriminação religiosa como espécie daquela;

• Na seara das ações coletivas, faz-se mister destacar e esboçar um conteúdo para os conceitos de honra e dignidade dos grupos raciais e religiosos estatuídos na Lei da Ação Civil Pública;

• Já nos domínios do processo penal, seria util a formulação de uma diretiva endereçada aos jurados, inspirada no art. 472 do CPP, que os advertisse sobre a necessária atenção ao fenômeno do racismo como potencial condicionanente de suas deliberações no Tribunal do Júri.

Por último, mas não em último, o “Protocolo”, inclusive na parte dispositiva, menciona o desiderato de “sensibilização” dos operadores do direito.

A par da aludida condenação do Brasil no caso “Simone Diniz”, das razões de decidir do STF no HC do perfilamento racial e das inferências autorizadas pelos precedentes do STJ sobre reconhecimento fotográfico, são robustas as provas da gravidade e frequencia de litígios nos quais incide o fenômeno do racismo, inclusive nas decisões de atores do sistema de Justiça.

Sendo assim, a sociedade tem o direito de exigir que os aplicadores do direito sejam preparados para assumir uma postura desapaixonada frente ao problema sob pena de comprometimento da qualidade da jurisdição e da credibilidade do Judiciário, da lei e, no limite, da própria democracia.

Estamos a tratar, portanto, de um imperativo hipótetico kantiano, um dever funcional e não apenas um imperativo categórico, uma obrigação ética.

Trata-se de esforço que necessariamente deverá envolver o ensino jurídico, criação de disciplinas permanentes nas escolas da magistratura, MP, Defensoria e advocacia; inserção obrigatória de questões sobre a temática em quaisquer concursos das carreiras jurídicas, etc.

Mas isso já é assunto para outro artigo, incluindo as intersecções entre o “Protocolo” e a tormentosa e necessária disciplina dos parâmetros legais da atividade interpretativa.